27.6.10



ela parecia uma criança com o entusiasmo a crescer ao segundo. escolheu deixar de olhar para os ponteiros porque eles pareciam não andar. veste roupa simples mas sempre fashionista como gosta de fazer todos os dias para se sentir parte do mundo. quer estar bonita mas não muito. ela cheira a jardim. põe o risco nos olhos para ajudar a acentuar a verdade e sentasse no sofá. quer ouvir música mas não sabe qual seria a mais perfeita a mais apropriada a mais determinante para recomeçar e partir do exacto ponto onde tinham ficado. eram dez horas e dezasseis minutos e ela finalmente ganha coragem para enviar a mensagem que o traria para perto dela. os minutos seguintes viraram doce tortura à espera de resposta. inevitável foi começar a justificar a demora com a culpa de ter escolhido as palavras erradas em ter colocado vírgulas e pontos. as mensagens são impessoais e ela sabe disso. enrola um cigarro. fumar pode não ser cool mas os cigarros ajudam sempre a queimar tempo e a continuar a espera. finalmente decide-se a pôr um velho vínil a tocar, afinal também é conhecido o poder afrodisíaco do vínil. por hábito trás sentimento à flor-da-pele. voltasse a sentar no sofá. desta vez tem sede e levantasse para ir buscar um copo de água fresco. acredita que a água seja capaz de lavar a alma e com isso limpar as inseguranças e incertezas que lhe falam alto ao ouvido a dizer para recuar. para parar. para deixar de sonhar. quarenta e cinco minutos depois o telemóvel toca. um sinal dele. ela pega no telemóvel e lê: «mais tarde? aguentas?» um súbito arrepio é sentido no corpo. ela já viveu isto antes. sabe o que está para vir. sabe que ele está prestes a aproveitar-se da velha paixão que ela sente que de tão intensa a torna permissiva. e logo ele que tem o dom da palavra vai e escolhe o verbo aguentar. haja aflição. está claro ele não sente respeito por ela. carinho ou qualquer outro sentimento. nas entrelinhas é de claro entendimento que ele espera que ela lhe abra a porta e as pernas na calada da noite. numa prontidão laxiva fora de horas. como se dum romance sujo se tratasse ou algo tão promiscuo que não se mostra e esconde. como se duma condição tóxica se revelasse. ela volta a pousar o telemóvel na mesa. quer gritar chorar e desesperar. mas o choque não deixa. voltasse a sentar no sofá leva as mãos ao colo e fecha o pulgar na mão, esse, feliz, vai ser o único a sentir o calor do abraço. e deixasse ficar. o vínil toca o pulgar sente-se quente e as lágrimas secaram juntamente com as palavras. as horas passam e correm e ela não sente. está estranhamente ausente de si mesma sentada no sofá. lembrasse do que ele lhe tinha dito dias antes «olha que nada de bom poderá vir daqui» ela agora entende. num momento de fúria adjectivasse e debatesse e culpasse por voltar a estar naquela posição. na mesma posição que ficou tempos atrás em que de feliz e sonhadora passou a vulgar num abrir e fechar de olhos. e as horas passam com ela sentada no sofá. o telemóvel volta a tocar. é ele. o telemóvel trás noticias dele. como tem medo que os dedos fiquem entorpecidos e não consigam escrever não, mais uma vez não responde. ele liga. ela deixa tocar, olha em pânico para o telemóvel e perguntasse se conseguirá falar. balbuciar algo que não pareça triste e carente e tenha sabor a desilusão. mas rápidamente fraqueja e atende. ouve a voz dele e quase sente as forças a desaparecerem e quase se ouve a implorar que ele chegue rápido porque ela já o espera faz tempo. tempo demais. mas ele está indiferente e ela renitente. ele diz estar perto. mas ela com uma força que não se sabe de onde vem faz entender que não o quer. desculpasse e desliga dizendo que vai dormir. mas a verdade é que não dormiu nessa noite nem na noite que veio depois. os dias seguintes e as pessoas e a vida passou e ela nem deu conta. quem tinha conseguido fazer palavras nascerem por urgência. quem tinha prometido calar. quem a tinha feito voar de londres a lisboa e quem tinha trazido em tempos pólvora e paz da verdadeira na palma duma mão escondia na outra faca afiada. mais uma ferida. outra ferida. ela sabe que cresceu mais um bocadinho naquela noite e que aprendeu e endureceu. ela sente-se a ficar cada vez mais dura. prevê um dia acabar com um coração de pedra e por isso e daqui em diante recusasse a sair do sofá. o mundo é muito mais fácil visto do seu sofá.