9.6.09

"Confissões de Jorge Palma"


"O encontro estava marcado para as três da tarde. O local escolhido fora uma esplanada de um restaurante perto da casa dele em Lisboa. A acabar de almoçar, com o calor destes dias a embalar a digestão, a conversa arrancou lenta. Os óculos escuros escondiam-lhe o olhar. O sorriso abria-se entre músicas que ia cantando, avulso - Dylan, Xutos & Pontapés, dois versos de temas seus... "Em 40 anos de carreira, já fiz para aí umas 150 canções."
Acende cigarro atrás de cigarro. Tem à frente um copo de cerveja. Está cansado, depois de uma noite inteira sem dormir. O raciocínio balança de um lado para o outro, tal como a memória, que de repente se aviva: "Neste momento, tenho encomendas para teatro e cinema. E ainda por cima vou aparecer." De repente, pára. "Não posso falar destes projectos ainda", explica. Mas continua: "Tenho três dias para ler dois guiões e para compor. Trabalho sob pressão. É para amanhã, é para amanhã... Fiquei de fazer, faço."
Do presente corre até ao passado. Ao início de tudo. É do piano que estava lá em casa como um brinquedo que fala. Lembra-se de como era bom repetir as notas, descobrir os acordes. "Tinha 4 anos e já estava a fazer tan-tan-tan-tan." Solta os êxitos que tocava: Tony de Matos, Simone, Madalena Iglésias. Vai até ao Conservatório de Música e cita Mozart, Beethoven, Schubert, os compositores que preenchiam as aulas da sua infância. "Mas às tantas um gajo chega aos 14 anos e... o que é isto? São os Beatles, os Rolling Stones. Muda tudo. O resto deixa de fazer sentido."
As recordações recuam mais dois anos. O rosto tolda-se. A voz silencia-se. Mais um golo de cerveja. "Eu a tentar aprender a fumar à pressa para fazer parte do grupo. E a beber. A beber e a vomitar o que bebia. A beber à força, com 12, 13 anos. Não gostava. Mas tinha de ser homem, provar que era homem." À pergunta "E agora ainda é preciso beber para provar que se é homem?", responde lentamente: "É muito difícil deixar isto. Não consigo!" A consciência pesa-lhe. Alivia-o o facto de ter conseguido libertar-se de todas as outras drogas. Surge a palavra 'vício', o termo 'excessos'. "Eu tentei." Voltam os excessos, colados a ele como uma espécie de imagem de marca, a do enfant terrible. Não a nega, não a repudia. "Sou um boémio, mas as pessoas não se lembram que trabalho, não dão qualquer importância a isso. Eu trabalho mesmo, vou-me aguentando..."
Cai-lhe a vida inteira sobre a cabeça, o seu mundo. Desfilam nomes: Maria Velho da Costa, Manuel Cintra, Rui Madeira Braga, Regina Guimarães, Lia Gama, Guida Rainho, Jorge Silva Melo. "Acreditaram em mim." Segue-se nova lista: Sérgio Godinho, Tim, Rui Veloso, Alex Cortez. Nomes associados a episódios, uns difusos, outros mais precisos. Associados aos ensaios, a que chegava atrasado, a pedir desculpa. Às unhas roídas de quem o esperava. Doem-lhe as memórias. "Sinto-me mal com isso", desabafa. Sente-se mal também com as desilusões que já provocou no seu público. "Mas depois também tenho amigos que dizem assim, estou-me a lembrar do Zé Nabo: 'Já foi? Foi bom.' E sigo em frente. Mas claro que tenho consciência, não é? Estive a tocar piano um bocado ao lado, toquei mal. Sei quando faço bem e quando faço mal."
Outro golo de cerveja, já quente. Gargalhadas para desanuviar o ambiente. É densa a vida de Jorge Palma, hoje. Pensa. Pára de pensar para cantar qualquer coisa. Muda de língua. Salta entre o português, o inglês, o francês e o italiano. "Tenho uma grande sorte com os colegas de trabalho e com o público. Eu nunca fui profissional. Eu sou um amador da música. Isto pode parecer um cliché. Mas é verdade. É assim que me sinto. Sempre foi assim." Esta constatação é novo mote para regressar ao passado. A Copenhaga, para onde fugiu em 1973, com medo da guerra colonial. Um exílio que o levou a trabalhar no Hotel Sheraton, a aspirar e a fazer camas. Copenhaga traz-lhe ao pensamento Ary dos Santos, o mestre que o ensinara a escrever em português pouco tempo antes de sair do país. "Estou a falar de mim com 19 anos. Ouvia o Cohen, o Dylan, o Brel, o Ferré. Não conseguia escrever uma palavra em português. Já tinha 15 canções. O Carlos Cruz e o Thilo Krasmann dizem-me para gravar. Há um senhor da Valentim de Carvalho, chamado Mário Martins, que me diz que o estúdio está livre. 'Bora! E eu sem conseguir escrever um verso em português."
Estava habituado aos Beatles, mesmo a Led Zeppelin, Cohen, Dylan; gostava muito do Dylan porque tinha uma música ('Like a Rolling Stone') que dava para dançar com as miúdas na Costa da Caparica... O impasse foi resolvido por Fernando Tordo, que lhe apresentou Ary dos Santos. O encontro foi no Vá-Vá, às três da tarde. "Às sete já estava em casa dele com a guitarra. 'Anda cá, puto, toca aí.' Fui lendo, lendo o que ele escrevia e o que para lá tinha, ele a explicar-me a prosódia. Ao fim de um quarto de hora tinha uma canção", conta, já com os óculos escuros na cabeça e os olhos a vibrarem. "Andámos um ano aí a vadiar. É quando conheço a Amália, a Germana Tânger, o Luís Sttau Monteiro." A vida torna-se num frenesim. "Os gajos eram todos bons cozinheiros, havia sempre uma festa algures. Em minha casa, hum... A minha primeira mulher não era tão boa cozinheira como isso, fazia umas coisas. Eu não fazia nada. Mas o Ary era muito bom na cozinha. Hoje era aqui, amanhã ali, andava sempre a rodar. Fiz arranjos para tanta gente, fiz discos. Os gajos acreditavam em mim."
A conversa avança em círculos. A memória atraiçoa-o vezes sem conta. As horas vão passando, e a cerveja já não o satisfaz. A voz fica entaramelada. Pede um whisky ainda na esplanada do restaurante que lhe serve de cantina. Já são quase seis da tarde. Pensa naquilo que o motivava. Aí não tem dúvidas: "Sexo, drogas e rock'n'roll." Agradava-lhe a ideia do tipo com uma guitarra às costas. "Põe-se a guitarra no colo, faz-se uma esplanada, tira-se uns dinheiros, engata-se umas miúdas, há sempre copos." Não fala de um ideal de vida, muito menos de uma filosofia, que diz nem ter. "Mas esta vida não a aconselho a ninguém. A não ser a quem nasça para isto. Eu nasci para isto e hei-de morrer com isto. Nasci para tocar. Estou de directa, mas se calhar, daqui a duas horas, estou a tocar aí com uns amigos, a fazer uma jam. Felizmente, tenho dois pianos, um de cauda e um curto, tenho uma data de guitarras, é pegar numa e dizer: 'Olha, é esta.'" Não está longe da verdade. Pouco mais de uma hora e meia depois, está em casa a tocar com Lourenço, "um afilhado", acabado de chegar de Nova Iorque, quatro dias a tocar na rua. "Enquanto eu tiver dedinhos e meia de voz, posso sempre recitar", declara.
É o momento de viragem no seu discurso cheio de curvas. Será que a vida continua a ser uma festa? Será que não tem agruras? "Então não há agruras. Não durmo, tenho uma barriga de que não gosto, uma pele que não é a minha. Estou preso a um triângulo que me assusta: cabeça, fígado e pele. Bebo muito, fumo muito. Não sei que medicamentos posso tomar para tratar cada vértice desse triângulo e que não interfiram uns com os outros. Isso preocupa-me. Tenho de sair daqui. É dermatologista na terça, psiquiatra na quarta, análise ao fígado na quinta. Testes e mais testes. Não tenho ajuda se não souber o que é que me está a fazer mal." Mesmo assim, responde que não à pergunta se gostava de deixar o álcool. "Não. Deixar, deixar... Nem o meu psiquiatra me aconselha. Não se pode parar de um momento para o outro. Na quantidade que eu bebo, parar faz mal. Deixar o álcool para sempre também não quero. Reduzir... talvez. Amanhã menos dois copos, depois de amanhã menos três. Com a vida que eu tenho, é tão complicado..."
A preocupação cola-se-lhe à expressão. Não o larga durante bastante tempo. Gostava que alguém o encorajasse. Pede ajuda para o ar. "Alguém que me desvie do álcool, que me faça não ter vontade de beber isto. Estou aqui há não sei quanto tempo a falar disto... É uma chatice, torna-se uma chatice. Se fosse num bom jantar e estivesse a beber um bom vinho, gostava, gosto disso, gosto da vida. Mas assim é horrível."
Olha então para uma vida estragada, sem sonhos. O triângulo que o assustava passa a ser um pentágono. "Ainda não percebi em que medida é que isto me está a afectar em termos de criatividade." Di-lo com o tema 'Encosta-te a Mim' na cabeça. Retirada do álbum "Voo Nocturno" (EMI, 2007), a canção simboliza o auge da sua popularidade. E sucessos assim, Jorge Palma quer mais. "Mas não me posso queixar. Se tomo 8 mg de Lorenin, não posso estar à espera de um milagre. É impossível ter a cabeça a funcionar normalmente, quer em termos físicos quer do foro intelectual. A criatividade passa por essa cabeça que não funciona. A minha sorte é ter um vício tão grande de escrever e compor que já tenho esquemas montados cá dentro e as coisas acabam por sair. Já vivi esses momentos de criatividade tão intensamente... que os gravei, estão todos cá dentro. Portanto, naturalmente, eu toco. Ainda consigo. Ao piano, na guitarra, naquele ambiente em que sempre vivi e que vivi tão profundamente. Às vezes sou é bastante mais lento."
Paris, Londres, Berlim... As cidades que calcorreou com a guitarra às costas fazem parte de um passado de que sente saudades. "Muitas saudades. Saudades de tudo. Da rua, dos bares, dos amigos, do prazer que senti... How many roads must a man walk down..."
De arrependimentos não sabe falar. Cita um novo tema em que está a trabalhar: "Imperdoável é o que não vivi, imperdoável é o que esqueci, imperdoável é desistir de lutar, imperdoável é perdoar..." Sabe que há coisas que podia ter feito muito melhor. "Mas mesmo muito melhor. Não pude. Não tinha idade, não tinha maturidade, não deu. Agora olho para trás e vejo. O que é que posso dizer? Foi erro. Vou fazer melhor agora. Tentar não repetir erros crassos. Tratei mal pessoas. Na altura não tinha consciência." É um regresso às origens: "Os meus valores basicamente eram sexo drogas e rock'n'roll. Agora, com um bocadinho mais de experiência, apareceram outros, mas aqueles continuam a ser o grande passaporte. A gente não muda muito. Aprende-se é algumas coisas, uns truques. A não magoar tanto certas pessoas. Não dei por isso. Podia ter feito coisas de outra maneira. Mas era assim que eu era."
Ao piano, mistura Mahler com a tradicional 'Frère Jacques', e a 'Canção de Lisboa' soa. Fala de Brecht e Kurt Weill. Volta ao Conservatório em 1985, com 30 anos de idade. "Foi uma grande ajuda em termos de construção musical da minha cabeça." Lembra Rimbaud e Miller ao mesmo tempo que recorda Bach ou Liszt, os professores Jorge Peixinho, Olga Prats e Miguel Henriques... Recua no tempo. Vai mesmo lá atrás. "A minha mãe tocava e o meu pai cantava. Ela ensinou-me a tocar e ele todos os boleros e tangos da minha vida. Depois partiram a loiça toda. Foi o meu pai que me foi buscar ao Algarve, no fim de 1969. 'Anda lá acabar o liceu. Não tens clientela, o que é que estás aqui a fazer?' Tinha razão." Hoje olha para os dois filhos, Vicente e Francisco, e diz não ter conselhos para lhes dar. "Eles é que me dão a mim: 'Ó pai, não bebas tanto!'"

Texto publicado no Actual da edição do Expresso de 5 de Junho de 2009